A Carta de Caminha
Carta, de Pero Vaz de Caminha
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Edição de base Carta a El Rei D. Manuel,
Dominus : São Paulo, 1963.
Senhor,
posto que o Capitão-mor desta Vossa frota, e assim os outros capitães
escrevam a Vossa Alteza a notícia do achamento desta Vossa terra nova, que se
agora nesta navegação achou, não deixarei de também dar disso minha conta a
Vossa Alteza, assim como eu melhor puder, ainda que -- para o bem contar e falar
-- o saiba pior que todos fazer!
Todavia tome Vossa Alteza minha ignorância por boa vontade, a qual bem
certo creia que, para aformosentar nem afear, aqui não há de pôr mais do que
aquilo que vi e me pareceu.
Da marinhagem e das singraduras do caminho não darei aqui conta a Vossa
Alteza -- porque o não saberei fazer -- e os pilotos devem ter este cuidado.
E portanto, Senhor, do que hei de falar começo:
E digo quê:
A partida de Belém foi -- como Vossa Alteza sabe, segunda-feira 9 de
março. E sábado, 14 do dito mês, entre as 8 e 9 horas, nos achamos entre as
Canárias, mais perto da Grande Canária. E ali andamos todo aquele dia em calma,
à vista delas, obra de três a quatro léguas. E domingo, 22 do dito mês, às dez
horas mais ou menos, houvemos vista das ilhas de Cabo Verde, a saber da ilha de
São Nicolau, segundo o dito de Pero Escolar, piloto.
Na noite seguinte à segunda-feira amanheceu, se perdeu da frota Vasco de
Ataíde com a sua nau, sem haver tempo forte ou contrário para poder ser !
Fez o capitão suas diligências para o achar, em umas e outras partes.
Mas... não apareceu mais !
E assim seguimos nosso caminho, por este mar de longo, até que terça-feira
das Oitavas de Páscoa, que foram 21 dias de abril, topamos alguns sinais de
terra, estando da dita Ilha -- segundo os pilotos diziam, obra de 660 ou 670
léguas -- os quais eram muita quantidade de ervas compridas, a que os mareantes
chamam botelho, e assim mesmo outras a que dão o nome de rabo-de-asno. E
quarta-feira seguinte, pela manhã, topamos aves a que chamam furabuchos.
Neste mesmo dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra! A saber,
primeiramente de um grande monte, muito alto e redondo; e de outras serras mais
baixas ao sul dele; e de terra chã, com grandes arvoredos; ao qual monte alto o
capitão pôs o nome de O Monte Pascoal e à terra A Terra de Vera Cruz!
Mandou lançar o prumo. Acharam vinte e cinco braças. E ao sol-posto umas
seis léguas da terra, lançamos ancoras, em dezenove braças -- ancoragem limpa.
Ali ficamo-nos toda aquela noite. E quinta-feira, pela manhã, fizemos vela e
seguimos em direitura à terra, indo os navios pequenos diante -- por dezessete,
dezesseis, quinze, catorze, doze, nove braças -- até meia légua da terra, onde
todos lançamos ancoras, em frente da boca de um rio. E chegaríamos a esta
ancoragem às dez horas, pouco mais ou menos.
E dali avistamos homens que andavam pela praia, uns sete ou oito, segundo
disseram os navios pequenos que chegaram primeiro.
Então lançamos fora os batéis e esquifes. E logo vieram todos os capitães
das naus a esta nau do Capitão-mor. E ali falaram. E o Capitão mandou em terra a
Nicolau Coelho para ver aquele rio. E tanto que ele começou a ir-se para lá,
acudiram pela praia homens aos dois e aos três, de maneira que, quando o batel
chegou à boca do rio, já lá estavam dezoito ou vinte.
Pardos, nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Traziam
arcos nas mãos, e suas setas. Vinham todos rijamente em direção ao batel. E
Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os depuseram. Mas
não pôde deles haver fala nem entendimento que aproveitasse, por o mar quebrar
na costa. Somente arremessou-lhe um barrete vermelho e uma carapuça de linho que
levava na cabeça, e um sombreiro preto. E um deles lhe arremessou um sombreiro
de penas de ave, compridas, com uma copazinha de penas vermelhas e pardas, como
de papagaio. E outro lhe deu um ramal grande de continhas brancas, miúdas que
querem parecer de aljôfar, as quais peças creio que o Capitão manda a Vossa
Alteza. E com isto se volveu às naus por ser tarde e não poder haver deles mais
fala, por causa do mar.
À noite seguinte ventou tanto sueste com chuvaceiros que fez caçar as
naus. E especialmente a Capitaina. E sexta pela manhã, às oito horas, pouco mais
ou menos, por conselho dos pilotos, mandou o Capitão levantar ancoras e fazer
vela. E fomos de longo da costa, com os batéis e esquifes amarrados na popa, em
direção norte, para ver se achávamos alguma abrigada e bom pouso, onde nós
ficássemos, para tomar água e lenha. Não por nos já minguar, mas por nos
prevenirmos aqui. E quando fizemos vela estariam já na praia assentados perto do
rio obra de sessenta ou setenta homens que se haviam juntado ali aos poucos.
Fomos ao longo, e mandou o Capitão aos navios pequenos que fossem mais chegados
à terra e, se achassem pouso seguro para as naus, que amainassem.
E velejando nós pela costa, na distância de dez léguas do sítio onde
tínhamos levantado ferro, acharam os ditos navios pequenos um recife com um
porto dentro, muito bom e muito seguro, com uma mui larga entrada. E meteram-se
dentro e amainaram. E as naus foram-se chegando, atrás deles. E um pouco antes
de sol-pôsto amainaram também, talvez a uma légua do recife, e ancoraram a onze
braças.
E estando Afonso Lopez, nosso piloto, em um daqueles navios pequenos, foi,
por mandado do Capitão, por ser homem vivo e destro para isso, meter-se logo no
esquife a sondar o porto dentro. E tomou dois daqueles homens da terra que
estavam numa almadia: mancebos e de bons corpos. Um deles trazia um arco, e seis
ou sete setas. E na praia andavam muitos com seus arcos e setas; mas não os
aproveitou. Logo, já de noite, levou-os à Capitaina, onde foram recebidos com
muito prazer e festa.
A feição deles é serem pardos, um tanto avermelhados, de bons rostos e
bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. Nem fazem mais caso
de encobrir ou deixa de encobrir suas vergonhas do que de mostrar a cara. Acerca
disso são de grande inocência. Ambos traziam o beiço de baixo furado e metido
nele um osso verdadeiro, de comprimento de uma mão travessa, e da grossura de um
fuso de algodão, agudo na ponta como um furador. Metem-nos pela parte de dentro
do beiço; e a parte que lhes fica entre o beiço e os dentes é feita a modo de
roque de xadrez. E trazem-no ali encaixado de sorte que não os magoa, nem lhes
põe estorvo no falar, nem no comer e beber.
Os cabelos deles são corredios. E andavam tosquiados, de tosquia alta
antes do que sobre-pente, de boa grandeza, rapados todavia por cima das orelhas.
E um deles trazia por baixo da solapa, de fonte a fonte, na parte detrás, uma
espécie de cabeleira, de penas de ave amarela, que seria do comprimento de um
coto, mui basta e mui cerrada, que lhe cobria o toutiço e as orelhas. E andava
pegada aos cabelos, pena por pena, com uma confeição branda como, de maneira tal
que a cabeleira era mui redonda e mui basta, e mui igual, e não fazia míngua
mais lavagem para a levantar.
O Capitão, quando eles vieram, estava sentado em uma cadeira, aos pés uma
alcatifa por estrado; e bem vestido, com um colar de ouro, mui grande, ao
pescoço. E Sancho de Tovar, e Simão de Miranda, e Nicolau Coelho, e Aires
Corrêa, e nós outros que aqui na nau com ele íamos, sentados no chão, nessa
alcatifa. Acenderam-se tochas. E eles entraram. Mas nem sinal de cortesia
fizeram, nem de falar ao Capitão; nem a alguém. Todavia um deles fitou o colar
do Capitão, e começou a fazer acenos com a mão em direção à terra, e depois para
o colar, como se quisesse dizer-nos que havia ouro na terra. E também olhou para
um castiçal de prata e assim mesmo acenava para a terra e novamente para o
castiçal, como se lá também houvesse prata!
Mostraram-lhes um papagaio pardo que o Capitão traz consigo; tomaram-no
logo na mão e acenaram para a terra, como se os houvesse ali.
Mostraram-lhes um carneiro; não fizeram caso dele.
Mostraram-lhes uma galinha; quase tiveram medo dela, e não lhe queriam pôr
a mão. Depois lhe pegaram, mas como espantados.
Deram-lhes ali de comer: pão e peixe cozido, confeitos, fartéis, mel,
figos passados. Não quiseram comer daquilo quase nada; e se provavam alguma
coisa, logo a lançavam fora.
Trouxeram-lhes vinho em uma taça; mal lhe puseram a boca; não gostaram
dele nada, nem quiseram mais.
Trouxeram-lhes água em uma albarrada, provaram cada um o seu bochecho, mas
não beberam; apenas lavaram as bocas e lançaram-na fora.
Viu um deles umas contas de rosário, brancas; fez sinal que lhas dessem, e
folgou muito com elas, e lançou-as ao pescoço; e depois tirou-as e meteu-as em
volta do braço, e acenava para a terra e novamente para as contas e para o colar
do Capitão, como se dariam ouro por aquilo.
Isto tomávamos nós nesse sentido, por assim o desejarmos! Mas se ele
queria dizer que levaria as contas e mais o colar, isto não queríamos nós
entender, por que lho não havíamos de dar! E depois tornou as contas a quem lhas
dera. E então estiraram-se de costas na alcatifa, a dormir sem procurarem
maneiras de encobrir suas vergonhas, as quais não eram fanadas; e as cabeleiras
delas estavam bem rapadas e feitas.
O Capitão mandou pôr por baixo da cabeça de cada um seu coxim; e o da
cabeleira esforçava-se por não a estragar. E deitaram um manto por cima deles; e
consentindo, aconchegaram-se e adormeceram.
Sábado pela manhã mandou o Capitão fazer vela, fomos demandar a entrada, a
qual era mui larga e tinha seis a sete braças de fundo. E entraram todas as naus
dentro, e ancoraram em cinco ou seis braças -- ancoradouro que é tão grande e
tão formoso de dentro, e tão seguro que podem ficar nele mais de duzentos navios
e naus. E tanto que as naus foram distribuídas e ancoradas, vieram os capitães
todos a esta nau do Capitão-mor. E daqui mandou o Capitão que Nicolau Coelho e
Bartolomeu Dias fossem em terra e levassem aqueles dois homens, e os deixassem
ir com seu arco e setas, aos quais mandou dar a cada um uma camisa nova e uma
carapuça vermelha e um rosário de contas brancas de osso, que foram levando nos
braços, e um cascavel e uma campainha. E mandou com eles, para lá ficar, um
mancebo degredado, criado de dom João Telo, de nome Afonso Ribeiro, para lá
andar com eles e saber de seu viver e maneiras. E a mim mandou que fosse com
Nicolau Coelho. Fomos assim de frecha direitos à praia. Ali acudiram logo perto
de duzentos homens, todos nus, com arcos e setas nas mãos. Aqueles que nós
levamos acenaram-lhes que se afastassem e depusessem os arcos. E eles os
depuseram. Mas não se afastaram muito. E mal tinham pousado seus arcos quando
saíram os que nós levávamos, e o mancebo degredado com eles. E saídos não
pararam mais; nem esperavam um pelo outro, mas antes corriam a quem mais
correria. E passaram um rio que aí corre, de água doce, de muita água que lhes
dava pela braga. E muitos outros com eles. E foram assim correndo para além do
rio entre umas moitas de palmeiras onde estavam outros. E ali pararam. E naquilo
tinha ido o degredado com um homem que, logo ao sair do batel, o agasalhou e
levou até lá. Mas logo o tornaram a nós. E com ele vieram os outros que nós
leváramos, os quais vinham já nus e sem carapuças.
E então se começaram de chegar muitos; e entravam pela beira do mar para
os batéis, até que mais não podiam. E traziam cabaças d'água, e tomavam alguns
barris que nós levávamos e enchiam-nos de água e traziam-nos aos batéis. Não que
eles de todo chegassem a bordo do batel. Mas junto a ele, lançavam-nos da mão. E
nós tomávamo-los. E pediam que lhes dessem alguma coisa.
Levava Nicolau Coelho cascavéis e manilhas. E a uns dava um cascavel, e a
outros uma manilha, de maneira que com aquela encarna quase que nos queriam dar
a mão. Davam-nos daqueles arcos e setas em troca de sombreiros e carapuças de
linho, e de qualquer coisa que a gente lhes queria dar.
Dali se partiram os outros, dois mancebos, que não os vimos mais.
Dos que ali andavam, muitos -- quase a maior parte --traziam aqueles bicos
de osso nos beiços.
E alguns, que andavam sem eles, traziam os beiços furados e nos buracos
traziam uns espelhos de pau, que pareciam espelhos de borracha. E alguns deles
traziam três daqueles bicos, a saber um no meio, e os dois nos cabos.
E andavam lá outros, quartejados de cores, a saber metade deles da sua
própria cor, e metade de tintura preta, um tanto azulada; e outros quartejados
d'escaques.
Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem novinhas e gentis, com
cabelos muito pretos e compridos pelas costas; e suas vergonhas, tão altas e tão
cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as nós muito bem olharmos, não
se envergonhavam.
Ali por então não houve mais fala ou entendimento com eles, por a barbana
deles ser tamanha que se não entendia nem ouvia ninguém. Acenamos-lhes que se
fossem. E assim o fizeram e passaram-se para além do rio. E saíram três ou
quatro homens nossos dos batéis, e encheram não sei quantos barris d'água que
nós levávamos. E tornamo-nos às naus. E quando assim vínhamos, acenaram-nos que
voltássemos. Voltamos, e eles mandaram o degredado e não quiseram que ficasse lá
com eles, o qual levava uma bacia pequena e duas ou três carapuças vermelhas
para lá as dar ao senhor, se o lá houvesse. Não trataram de lhe tirar coisa
alguma, antes mandaram-no com tudo. Mas então Bartolomeu Dias o fez outra vez
tornar, que lhe desse aquilo. E ele tornou e deu aquilo, em vista de nós, a
aquele que o da primeira agasalhara. E então veio-se, e nós levamo-lo.
Esse que o agasalhou era já de idade, e andava por galanteria, cheio de
penas, pegadas pelo corpo, que parecia seteado como São Sebastião. Outros
traziam carapuças de penas amarelas; e outros, de vermelhas; e outros de verdes.
E uma daquelas moças era toda tingida de baixo a cima, daquela tintura e certo
era tão bem feita e tão redonda, e sua vergonha tão graciosa que a muitas
mulheres de nossa terra, vendo-lhe tais feições envergonhara, por não terem as
suas como ela. Nenhum deles era fanado, mas todos assim como nós.
E com isto nos tornamos, e eles foram-se.
À tarde saiu o Capitão-mor em seu batel com todos nós outros capitães das
naus em seus batéis a folgar pela baía, perto da praia. Mas ninguém saiu em
terra, por o Capitão o não querer, apesar de ninguém estar nela. Apenas saiu --
ele com todos nós -- em um ilhéu grande que está na baía, o qual, aquando
baixamar, fica mui vazio. Com tudo está de todas as partes cercado de água, de
sorte que ninguém lá pode ir, a não ser de barco ou a nado. Ali folgou ele, e
todos nós, bem uma hora e meia. E pescaram lá, andando alguns marinheiros com um
chinchorro; e mataram peixe miúdo, não muito. E depois volvemo-nos às naus, já
bem noite.
Ao domingo de Pascoela pela manhã, determinou o Capitão ir ouvir missa e
sermão naquele ilhéu. E mandou a todos os capitães que se arranjassem nos batéis
e fossem com ele. E assim foi feito. Mandou armar um pavilhão naquele ilhéu, e
dentro levantar um altar mui bem arranjado. E ali com todos nós outros fez dizer
missa, a qual disse o padre frei Henrique, em voz entoada, e oficiada com aquela
mesma voz pelos outros padres e sacerdotes que todos assistiram, a qual missa,
segundo meu parecer, foi ouvida por todos com muito prazer e devoção.
Ali estava com o Capitão a bandeira de Cristo, com que saíra de Belém, a
qual esteve sempre bem alta, da parte do Evangelho.
Acabada a missa, desvestiu-se o padre e subiu a uma cadeira alta; e nós
todos lançados por essa areia. E pregou uma solene e proveitosa pregação, da
história evangélica; e no fim tratou da nossa vida, e do achamento desta terra,
referindo-se à Cruz, sob cuja obediência viemos, que veio muito a propósito, e
fez muita devoção.
Enquanto assistimos à missa e ao sermão, estaria na praia outra tanta
gente, pouco mais ou menos, como a de ontem, com seus arcos e setas, e andava
folgando. E olhando-nos, sentaram. E depois de acabada a missa, quando nós
sentados atendíamos a pregação, levantaram-se muitos deles e tangeram corno ou
buzina e começaram a saltar e dançar um pedaço. E alguns deles se metiam em
almadias -- duas ou três que lá tinham -- as quais não são feitas como as que eu
vi; apenas são três traves, atadas juntas. E ali se metiam quatro ou cinco, ou
esses que queriam, não se afastando quase nada da terra, só até onde podiam
tomar pé.
Acabada a pregação encaminhou-se o Capitão, com todos nós, para os batéis,
com nossa bandeira alta. Embarcamos e fomos indo todos em direção à terra para
passarmos ao longo por onde eles estavam, indo na dianteira, por ordem do
Capitão, Bartolomeu Dias em seu esquife, com um pau de uma almadia que lhes o
mar levara, para o entregar a eles. E nós todos trás dele, a distância de um
tiro de pedra.
Como viram o esquife de Bartolomeu Dias, chegaram-se logo todos à água,
metendo-se nela até onde mais podiam. Acenaram-lhes que pousassem os arcos e
muitos deles os iam logo pôr em terra; e outros não os punham.
Andava lá um que falava muito aos outros, que se afastassem. Mas não já
que a mim me parecesse que lhe tinham respeito ou medo. Este que os assim andava
afastando trazia seu arco e setas. Estava tinto de tintura vermelha pelos peitos
e costas e pelos quadris, coxas e pernas até baixo, mas os vazios com a barriga
e estômago eram de sua própria cor. E a tintura era tão vermelha que a água lha
não comia nem desfazia. Antes, quando saía da água, era mais vermelho. Saiu um
homem do esquife de Bartolomeu Dias e andava no meio deles, sem implicarem nada
com ele, e muito menos ainda pensavam em fazer-lhe mal. Apenas lhe davam cabaças
d'água; e acenavam aos do esquife que saíssem em terra. Com isto se volveu
Bartolomeu Dias ao Capitão. E viemo-nos às naus, a comer, tangendo trombetas e
gaitas, sem os mais constranger. E eles tornaram-se a sentar na praia, e assim
por então ficaram.
Neste ilhéu, onde fomos ouvir missa e sermão, espraia muito a água e
descobre muita areia e muito cascalho. Enquanto lá estávamos foram alguns buscar
marisco e não no acharam. Mas acharam alguns camarões grossos e curtos, entre os
quais vinha um muito grande e muito grosso; que em nenhum tempo o vi tamanho.
Também acharam cascas de berbigões e de amêijoas, mas não toparam com nenhuma
peça inteira. E depois de termos comido vieram logo todos os capitães a esta
nau, por ordem do Capitão-mor, com os quais ele se aportou; e eu na companhia. E
perguntou a todos se nos parecia bem mandar a nova do achamento desta terra a
Vossa Alteza pelo navio dos mantimentos, para a melhor mandar descobrir e saber
dela mais do que nós podíamos saber, por irmos na nossa viagem.
E entre muitas falas que sobre o caso se fizeram foi dito, por todos ou a
maior parte, que seria muito bem. E nisto concordaram. E logo que a resolução
foi tomada, perguntou mais, se seria bem tomar aqui por força um par destes
homens para os mandar a Vossa Alteza, deixando aqui em lugar deles outros dois
destes degredados.
E concordaram em que não era necessário tomar por força homens, porque
costume era dos que assim à força levavam para alguma parte dizerem que há de
tudo quanto lhes perguntam; e que melhor e muito melhor informação da terra
dariam dois homens desses degredados que aqui deixássemos do que eles dariam se
os levassem por ser gente que ninguém entende. Nem eles cedo aprenderiam a falar
para o saberem tão bem dizer que muito melhor estoutros o não digam quando cá
Vossa Alteza mandar.
E que portanto não cuidássemos de aqui por força tomar ninguém, nem fazer
escândalo; mas sim, para os de todo amansar e apaziguar, unicamente de deixar
aqui os dois degredados quando daqui partíssemos.
E assim ficou determinado por parecer melhor a todos.
Acabado isto, disse o Capitão que fôssemos nos batéis em terra. E
ver-se-ia bem, quejando era o rio. Mas também para folgarmos.
Fomos todos nos batéis em terra, armados; e a bandeira conosco. Eles
andavam ali na praia, à boca do rio, para onde nós íamos; e, antes que
chegássemos, pelo ensino que dantes tinham, puseram todos os arcos, e acenaram
que saíssemos. Mas, tanto que os batéis puseram as proas em terra, passaram-se
logo todos além do rio, o qual não é mais ancho que um jogo de mancal. E tanto
que desembarcamos, alguns dos nossos passaram logo o rio, e meteram-se entre
eles. E alguns aguardavam; e outros se afastavam. Com tudo, a coisa era de
maneira que todos andavam misturados. Eles davam desses arcos com suas setas por
sombreiros e carapuças de linho, e por qualquer coisa que lhes davam. Passaram
além tantos dos nossos e andaram assim misturados com eles, que eles se
esquivavam, e afastavam-se; e iam alguns para cima, onde outros estavam. E então
o Capitão fez que o tomassem ao colo dois homens e passou o rio, e fez tornar a
todos. A gente que ali estava não seria mais que aquela do costume. Mas logo que
o Capitão chamou todos para trás, alguns se chegaram a ele, não por o
reconhecerem por Senhor, mas porque a gente, nossa, já passava para aquém do
rio. Ali falavam e traziam muitos arcos e continhas, daquelas já ditas, e
resgatavam-nas por qualquer coisa, de tal maneira que os nossos levavam dali
para as naus muitos arcos, e setas e contas.
E então tornou-se o Capitão para aquém do rio. E logo acudiram muitos à
beira dele.
Ali veríeis galantes, pintados de preto e vermelho, e quartejados, assim
pelos corpos como pelas pernas, que, certo, assim pareciam bem. Também andavam
entre eles quatro ou cinco mulheres, novas, que assim nuas, não pareciam mal.
Entre elas andava uma, com uma coxa, do joelho até o quadril e a nádega, toda
tingida daquela tintura preta; e todo o resto da sua cor natural. Outra trazia
ambos os joelhos com as curvas assim tintas, e também os colos dos pés; e suas
vergonhas tão nuas, e com tanta inocência assim descobertas, que não havia nisso
desvergonha nenhuma.
Também andava lá outra mulher, nova, com um menino ou menina, atado com um
pano aos peitos, de modo que não se lhe viam senão as perninhas. Mas nas pernas
da mãe, e no resto, não havia pano algum.
Em seguida o Capitão foi subindo ao longo do rio, que corre rente à praia.
E ali esperou por um velho que trazia na mão uma pá de almadia. Falou, enquanto
o Capitão estava com ele, na presença de todos nós; mas ninguém o entendia, nem
ele a nós, por mais coisas que a gente lhe perguntava com respeito a ouro,
porque desejávamos saber se o havia na terra.
Trazia este velho o beiço tão furado que lhe cabia pelo buraco um grosso
dedo polegar. E trazia metido no buraco uma pedra verde, de nenhum valor, que
fechava por fora aquele buraco. E o Capitão lha fez tirar. E ele não sei que
diabo falava e ia com ela para a boca do Capitão para lha meter. Estivemos rindo
um pouco e dizendo chalaças sobre isso. E então enfadou-se o Capitão, e
deixou-o. E um dos nossos deu-lhe pela pedra um sombreiro velho; não por ela
valer alguma coisa, mas para amostra. E depois houve-a o Capitão, creio, para
mandar com as outras coisas a Vossa Alteza.
Andamos por aí vendo o ribeiro, o qual é de muita água e muito boa. Ao
longo dele há muitas palmeiras, não muito altas; e muito bons palmitos. Colhemos
e comemos muitos deles.
Depois tornou-se o Capitão para baixo para a boca do rio, onde tínhamos
desembarcado.
E além do rio andavam muitos deles dançando e folgando, uns diante os
outros, sem se tomarem pelas mãos. E faziam-no bem. Passou-se então para a outra
banda do rio Diogo Dias, que fora almoxarife de Sacavém, o qual é homem gracioso
e de prazer. E levou consigo um gaiteiro nosso com sua gaita. E meteu-se a
dançar com eles, tomando-os pelas mãos; e eles folgavam e riam e andavam com ele
muito bem ao som da gaita. Depois de dançarem fez ali muitas voltas ligeiras,
andando no chão, e salto real, de que se eles espantavam e riam e folgavam
muito. E conquanto com aquilo os segurou e afagou muito, tomavam logo uma
esquiveza como de animais montezes, e foram-se para cima.
E então passou o rio o Capitão com todos nós, e fomos pela praia, de
longo, ao passo que os batéis iam rentes à terra. E chegamos a uma grande lagoa
de água doce que está perto da praia, porque toda aquela ribeira do mar é
apaulada por cima e sai a água por muitos lugares.
E depois de passarmos o rio, foram uns sete ou oito deles meter-se entre
os marinheiros que se recolhiam aos batéis. E levaram dali um tubarão que
Bartolomeu Dias matou. E levavam-lho; e lançou-o na praia.
Bastará que até aqui, como quer que se lhes em alguma parte amansassem,
logo de uma mão para outra se esquivavam, como pardais do cevadouro. Ninguém não
lhes ousa falar de rijo para não se esquivarem mais. E tudo se passa como eles
querem -- para os bem amansarmos !
Ao velho com quem o Capitão havia falado, deu-lhe uma carapuça vermelha. E
com toda a conversa que com ele houve, e com a carapuça que lhe deu tanto que se
despediu e começou a passar o rio, foi-se logo recatando. E não quis mais tornar
do rio para aquém. Os outros dois o Capitão teve nas naus, aos quais deu o que
já ficou dito, nunca mais aqui apareceram -- fatos de que deduzo que é gente
bestial e de pouco saber, e por isso tão esquiva. Mas apesar de tudo isso andam
bem curados, e muito limpos. E naquilo ainda mais me convenço que são como aves,
ou alimárias montezinhas, as quais o ar faz melhores penas e melhor cabelo que
às mansas, porque os seus corpos são tão limpos e tão gordos e tão formosos que
não pode ser mais! E isto me faz presumir que não tem casas nem moradias em que
se recolham; e o ar em que se criam os faz tais. Nós pelo menos não vimos até
agora nenhumas casas, nem coisa que se pareça com elas.
Mandou o Capitão aquele degredado, Afonso Ribeiro, que se fosse outra vez
com eles. E foi; e andou lá um bom pedaço, mas a tarde regressou, que o fizeram
eles vir: e não o quiseram lá consentir. E deram-lhe arcos e setas; e não lhe
tomaram nada do seu. Antes, disse ele, que lhe tomara um deles umas continhas
amarelas que levava e fugia com elas, e ele se queixou e os outros foram logo
após ele, e lhas tomaram e tornaram-lhas a dar; e então mandaram-no vir. Disse
que não vira lá entre eles senão umas choupaninhas de rama verde e de feteiras
muito grandes, como as de Entre Douro e Minho. E assim nos tornamos às naus, já
quase noite, a dormir.
Segunda-feira, depois de comer, saímos todos em terra a tomar água. Ali
vieram então muitos; mas não tantos como as outras vezes. E traziam já muito
poucos arcos. E estiveram um pouco afastados de nós; mas depois pouco a pouco
misturaram-se conosco; e abraçavam-nos e folgavam; mas alguns deles se
esquivavam logo. Ali davam alguns arcos por folhas de papel e por alguma
carapucinha velha e por qualquer coisa. E de tal maneira se passou a coisa que
bem vinte ou trinta pessoas das nossas se foram com eles para onde outros muitos
deles estavam com moças e mulheres. E trouxeram de lá muitos arcos e barretes de
penas de aves, uns verdes, outros amarelos, dos quais creio que o Capitão há de
mandar uma amostra a Vossa Alteza.
E segundo diziam esses que lá tinham ido, brincaram com eles. Neste dia os
vimos mais de perto e mais à nossa vontade, por andarmos quase todos misturados:
uns andavam quartejados daquelas tinturas, outros de metades, outros de tanta
feição como em pano de ras, e todos com os beiços furados, muitos com os ossos
neles, e bastantes sem ossos. Alguns traziam uns ouriços verdes, de árvores, que
na cor queriam parecer de castanheiras, embora fossem muito mais pequenos. E
estavam cheios de uns grãos vermelhos, pequeninos que, esmagando-se entre os
dedos, se desfaziam na tinta muito vermelha de que andavam tingidos. E quanto
mais se molhavam, tanto mais vermelhos ficavam.
Todos andam rapados até por cima das orelhas; assim mesmo de sobrancelhas
e pestanas.
Trazem todos as testas, de fonte a fonte, tintas de tintura preta, que
parece uma fita preta da largura de dois dedos.
E o Capitão mandou aquele degredado Afonso Ribeiro e a outros dois
degredados que fossem meter-se entre eles; e assim mesmo a Diogo Dias, por ser
homem alegre, com que eles folgavam. E aos degredados ordenou que ficassem lá
esta noite.
Foram-se lá todos; e andaram entre eles. E segundo depois diziam, foram
bem uma légua e meia a uma povoação, em que haveria nove ou dez casas, as quais
diziam que eram tão compridas, cada uma, como esta nau capitaina. E eram de
madeira, e das ilhargas de tábuas, e cobertas de palha, de razoável altura; e
todas de um só espaço, sem repartição alguma, tinham de dentro muitos esteios; e
de esteio a esteio uma rede atada com cabos em cada esteio, altas, em que
dormiam. E de baixo, para se aquentarem, faziam seus fogos. E tinha cada casa
duas portas pequenas, uma numa extremidade, e outra na oposta. E diziam que em
cada casa se recolhiam trinta ou quarenta pessoas, e que assim os encontraram; e
que lhes deram de comer dos alimentos que tinham, a saber muito inhame, e outras
sementes que na terra dá, que eles comem. E como se fazia tarde fizeram-nos logo
todos tornar; e não quiseram que lá ficasse nenhum. E ainda, segundo diziam,
queriam vir com eles. Resgataram lá por cascavéis e outras coisinhas de pouco
valor, que levavam, papagaios vermelhos, muito grandes e formosos, e dois verdes
pequeninos, e carapuças de penas verdes, e um pano de penas de muitas cores,
espécie de tecido assaz belo, segundo Vossa Alteza todas estas coisas verá,
porque o Capitão vo-las há de mandar, segundo ele disse. E com isto vieram; e
nós tornamo-nos às naus.
Terça-feira, depois de comer, fomos em terra, fazer lenha, e para lavar
roupa. Estavam na praia, quando chegamos, uns sessenta ou setenta, sem arcos e
sem nada. Tanto que chegamos, vieram logo para nós, sem se esquivarem. E depois
acudiram muitos, que seriam bem duzentos, todos sem arcos. E misturaram-se todos
tanto conosco que uns nos ajudavam a acarretar lenha e metê-las nos batéis. E
lutavam com os nossos, e tomavam com prazer. E enquanto fazíamos a lenha,
construíam dois carpinteiros uma grande cruz de um pau que se ontem para isso
cortara. Muitos deles vinham ali estar com os carpinteiros. E creio que o faziam
mais para verem a ferramenta de ferro com que a faziam do que para verem a cruz,
porque eles não tem coisa que de ferro seja, e cortam sua madeira e paus com
pedras feitas como cunhas, metidas em um pau entre duas talas, mui bem atadas e
por tal maneira que andam fortes, porque lhas viram lá. Era já a conversação
deles conosco tanta que quase nos estorvavam no que havíamos de fazer.
E o Capitão mandou a dois degredados e a Diogo Dias que fossem lá à aldeia
e que de modo algum viessem a dormir às naus, ainda que os mandassem embora. E
assim se foram.
Enquanto andávamos nessa mata a cortar lenha, atravessavam alguns
papagaios essas árvores; verdes uns, e pardos, outros, grandes e pequenos, de
sorte que me parece que haverá muitos nesta terra. Todavia os que vi não seriam
mais que nove ou dez, quando muito. Outras aves não vimos então, a não ser
algumas pombas-seixeiras, e pareceram-me maiores bastante do que as de Portugal.
Vários diziam que viram rolas, mas eu não as vi. Todavia segundo os arvoredos
são mui muitos e grandes, e de infinitas espécies, não duvido que por esse
sertão haja muitas aves!
E cerca da noite nós volvemos para as naus com nossa lenha.
Eu creio, Senhor, que não dei ainda conta aqui a Vossa Alteza do feitio de
seus arcos e setas. Os arcos são pretos e compridos, e as setas compridas; e os
ferros delas são canas aparadas, conforme Vossa Alteza verá alguns que creio que
o Capitão a Ela há de enviar.
Quarta-feira não fomos em terra, porque o Capitão andou todo o dia no
navio dos mantimentos a despejá-lo e fazer levar às naus isso que cada um podia
levar. Eles acudiram à praia, muitos, segundo das naus vimos. Seriam perto de
trezentos, segundo Sancho de Tovar que para lá foi. Diogo Dias e Afonso Ribeiro,
o degredado, aos quais o Capitão ontem ordenara que de toda maneira lá
dormissem, tinham voltado já de noite, por eles não quererem que lá ficassem. E
traziam papagaios verdes; e outras aves pretas, quase como pegas, com a
diferença de terem o bico branco e rabos curtos. E quando Sancho de Tovar
recolheu à nau, queriam vir com ele, alguns; mas ele não admitiu senão dois
mancebos, bem dispostos e homens de prol. Mandou pensar e curá-los mui bem essa
noite. E comeram toda a ração que lhes deram, e mandou dar-lhes cama de lençóis,
segundo ele disse. E dormiram e folgaram aquela noite. E não houve mais este dia
que para escrever seja.
Quinta-feira, derradeiro de abril, comemos logo, quase pela manhã, e fomos
em terra por mais lenha e água. E em querendo o Capitão sair desta nau, chegou
Sancho de Tovar com seus dois hóspedes. E por ele ainda não ter comido,
puseram-lhe toalhas, e veio-lhe comida. E comeu. Os hóspedes, sentaram-no cada
um em sua cadeira. E de tudo quanto lhes deram, comeram mui bem, especialmente
lacão cozido frio, e arroz. Não lhes deram vinho por Sancho de Tovar dizer que o
não bebiam bem.
Acabado o comer, metemo-nos todos no batel, e eles conosco. Deu um grumete
a um deles uma armadura grande de porco montês, bem revolta. E logo que a tomou
meteu-a no beiço; e porque se lhe não queria segurar, deram-lhe uma pouca de
cera vermelha. E ele ajeitou-lhe seu adereço da parte de trás de sorte que
segurasse, e meteu-a no beiço, assim revolta para cima; e ia tão contente com
ela, como se tivesse uma grande jóia. E tanto que saímos em terra, foi-se logo
com ela. E não tornou a aparecer lá.
Andariam na praia, quando saímos, oito ou dez deles; e de aí a pouco
começaram a vir. E parece-me que viriam este dia a praia quatrocentos ou
quatrocentos e cinqüenta. Alguns deles traziam arcos e setas; e deram tudo em
troca de carapuças e por qualquer coisa que lhes davam. Comiam conosco do que
lhes dávamos, e alguns deles bebiam vinho, ao passo que outros o não podiam
beber. Mas quer-me parecer que, se os acostumarem, o hão de beber de boa
vontade! Andavam todos tão bem dispostos e tão bem feitos e galantes com suas
pinturas que agradavam. Acarretavam dessa lenha quanta podiam, com mil boas
vontades, e levavam-na aos batéis. E estavam já mais mansos e seguros entre nós
do que nós estávamos entre eles.
Foi o Capitão com alguns de nós um pedaço por este arvoredo até um ribeiro
grande, e de muita água, que ao nosso parecer é o mesmo que vem ter à praia, em
que nós tomamos água. Ali descansamos um pedaço, bebendo e folgando, ao longo
dele, entre esse arvoredo que é tanto e tamanho e tão basto e de tanta qualidade
de folhagem que não se pode calcular. Há lá muitas palmeiras, de que colhemos
muitos e bons palmitos.
Ao sairmos do batel, disse o Capitão que seria bom irmos em direitura à
cruz que estava encostada a uma árvore, junto ao rio, a fim de ser colocada
amanhã, sexta-feira, e que nos puséssemos todos de joelhos e a beijássemos para
eles verem o acatamento que lhe tínhamos. E assim fizemos. E a esses dez ou doze
que lá estavam, acenaram-lhes que fizessem o mesmo; e logo foram todos beijá-la.
Parece-me gente de tal inocência que, se nós entendêssemos a sua fala e
eles a nossa, seriam logo cristãos, visto que não têm nem entendem crença
alguma, segundo as aparências. E portanto se os degredados que aqui hão de ficar
aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não duvido que eles, segundo a santa
tenção de Vossa Alteza, se farão cristãos e hão de crer na nossa santa fé, à
qual praza a Nosso Senhor que os traga, porque certamente esta gente é boa e de
bela simplicidade. E imprimir-se-á facilmente neles qualquer cunho que lhe
quiserem dar, uma vez que Nosso Senhor lhes deu bons corpos e bons rostos, como
a homens bons. E o Ele nos para aqui trazer creio que não foi sem causa. E
portanto Vossa Alteza, pois tanto deseja acrescentar a santa fé católica, deve
cuidar da salvação deles. E prazerá a Deus que com pouco trabalho seja assim!
Eles não lavram nem criam. Nem há aqui boi ou vaca, cabra, ovelha ou
galinha, ou qualquer outro animal que esteja acostumado ao viver do homem. E não
comem senão deste inhame, de que aqui há muito, e dessas sementes e frutos que a
terra e as árvores de si deitam. E com isto andam tais e tão rijos e tão nédios
que o não somos nós tanto, com quanto trigo e legumes comemos.
Nesse dia, enquanto ali andavam, dançaram e bailaram sempre com os nossos,
ao som de um tamboril nosso, como se fossem mais amigos nossos do que nós seus.
Se lhes a gente acenava, se queriam vir às naus, aprontavam-se logo para isso,
de modo tal, que se os convidáramos a todos, todos vieram. Porém não levamos
esta noite às naus senão quatro ou cinco; a saber, o Capitão-mor, dois; e Simão
de Miranda, um que já trazia por pagem; e Aires Gomes a outro, pagem também. Os
que o Capitão trazia, era um deles um dos seus hóspedes que lhe haviam trazido a
primeira vez quando aqui chegamos -- o qual veio hoje aqui vestido na sua
camisa, e com ele um seu irmão; e foram esta noite mui bem agasalhados tanto de
comida como de cama, de colchões e lençóis, para os mais amansar.
E hoje que é sexta-feira, primeiro dia de maio, pela manhã, saímos em
terra com nossa bandeira; e fomos desembarcar acima do rio, contra o sul onde
nos pareceu que seria melhor arvorar a cruz, para melhor ser vista. E ali marcou
o Capitão o sítio onde haviam de fazer a cova para a fincar. E enquanto a iam
abrindo, ele com todos nós outros fomos pela cruz, rio abaixo onde ela estava. E
com os religiosos e sacerdotes que cantavam, à frente, fomos trazendo-a dali, a
modo de procissão. Eram já aí quantidade deles, uns setenta ou oitenta; e quando
nos assim viram chegar, alguns se foram meter debaixo dela, ajudar-nos. Passamos
o rio, ao longo da praia; e fomos colocá-la onde havia de ficar, que será obra
de dois tiros de besta do rio. Andando-se ali nisto, viriam bem cento cinqüenta,
ou mais. Plantada a cruz, com as armas e a divisa de Vossa Alteza, que primeiro
lhe haviam pregado, armaram altar ao pé dela. Ali disse missa o padre frei
Henrique, a qual foi cantada e oficiada por esses já ditos. Ali estiveram
conosco, a ela, perto de cinqüenta ou sessenta deles, assentados todos de joelho
assim como nós. E quando se veio ao Evangelho, que nos erguemos todos em pé, com
as mãos levantadas, eles se levantaram conosco, e alçaram as mãos, estando assim
até se chegar ao fim; e então tornaram-se a assentar, como nós. E quando
levantaram a Deus, que nos pusemos de joelhos, eles se puseram assim como nós
estávamos, com as mãos levantadas, e em tal maneira sossegados que certifico a
Vossa Alteza que nos fez muita devoção.
Estiveram assim conosco até acabada a comunhão; e depois da comunhão,
comungaram esses religiosos e sacerdotes; e o Capitão com alguns de nós outros.
E alguns deles, por o Sol ser grande, levantaram-se enquanto estávamos
comungando, e outros estiveram e ficaram. Um deles, homem de cinqüenta ou
cinqüenta e cinco anos, se conservou ali com aqueles que ficaram. Esse, enquanto
assim estávamos, juntava aqueles que ali tinham ficado, e ainda chamava outros.
E andando assim entre eles, falando-lhes, acenou com o dedo para o altar, e
depois mostrou com o dedo para o céu, como se lhes dissesse alguma coisa de bem;
e nós assim o tomamos!
Acabada a missa, tirou o padre a vestimenta de cima, e ficou na alva; e
assim se subiu, junto ao altar, em uma cadeira; e ali nos pregou o Evangelho e
dos Apóstolos cujo é o dia, tratando no fim da pregação desse vosso
prosseguimento tão santo e virtuoso, que nos causou mais devoção.
Esses que estiveram sempre à pregação estavam assim como nós olhando para
ele. E aquele que digo, chamava alguns, que viessem ali. Alguns vinham e outros
iam-se; e acabada a pregação, trazia Nicolau Coelho muitas cruzes de estanho com
crucifixos, que lhe ficaram ainda da outra vinda. E houveram por bem que
lançassem a cada um sua ao pescoço. Por essa causa se assentou o padre frei
Henrique ao pé da cruz; e ali lançava a sua a todos -- um a um -- ao pescoço,
atada em um fio, fazendo-lha primeiro beijar e levantar as mãos. Vinham a isso
muitos; e lançavam-nas todas, que seriam obra de quarenta ou cinqüenta. E isto
acabado -- era já bem uma hora depois do meio dia -- viemos às naus a comer,
onde o Capitão trouxe consigo aquele mesmo que fez aos outros aquele gesto para
o altar e para o céu, (e um seu irmão com ele). A aquele fez muita honra e
deu-lhe uma camisa mourisca; e ao outro uma camisa destoutras.
E segundo o que a mim e a todos pareceu, esta gente, não lhes falece outra
coisa para ser toda cristã, do que entenderem-nos, porque assim tomavam aquilo
que nos viam fazer como nós mesmos; por onde pareceu a todos que nenhuma
idolatria nem adoração têm. E bem creio que, se Vossa Alteza aqui mandar quem
entre eles mais devagar ande, que todos serão tornados e convertidos ao desejo
de Vossa Alteza. E por isso, se alguém vier, não deixe logo de vir clérigo para
os batizar; porque já então terão mais conhecimentos de nossa fé, pelos dois
degredados que aqui entre eles ficam, os quais hoje também comungaram.
Entre todos estes que hoje vieram não veio mais que uma mulher, moça, a
qual esteve sempre à missa, à qual deram um pano com que se cobrisse; e
puseram-lho em volta dela. Todavia, ao sentar-se, não se lembrava de o estender
muito para se cobrir. Assim, Senhor, a inocência desta gente é tal que a de Adão
não seria maior -- com respeito ao pudor.
Ora veja Vossa Alteza quem em tal inocência vive se se convertera, ou não,
se lhe ensinarem o que pertence à sua salvação.
Acabado isto, fomos perante eles beijar a cruz. E despedimo-nos e fomos
comer.
Creio, Senhor, que, com estes dois degredados que aqui ficam, ficarão mais
dois grumetes, que esta noite se saíram em terra, desta nau, no esquife,
fugidos, os quais não vieram mais. E cremos que ficarão aqui porque de manhã,
prazendo a Deus fazemos nossa partida daqui.
Esta terra, Senhor, parece-me que, da ponta que mais contra o sul vimos,
até à outra ponta que contra o norte vem, de que nós deste porto houvemos vista,
será tamanha que haverá nela bem vinte ou vinte e cinco léguas de costa. Traz ao
longo do mar em algumas partes grandes barreiras, umas vermelhas, e outras
brancas; e a terra de cima toda chã e muito cheia de grandes arvoredos. De ponta
a ponta é toda praia... muito chã e muito formosa. Pelo sertão nos pareceu,
vista do mar, muito grande; porque a estender olhos, não podíamos ver senão
terra e arvoredos -- terra que nos parecia muito extensa.
Até agora não pudemos saber se há ouro ou prata nela, ou outra coisa de
metal, ou ferro; nem lha vimos. Contudo a terra em si é de muito bons ares
frescos e temperados como os de Entre-Douro-e-Minho, porque neste tempo d'agora
assim os achávamos como os de lá. Águas são muitas; infinitas. Em tal maneira é
graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo; por causa das águas que
tem!
Contudo, o melhor fruto que dela se pode tirar parece-me que será salvar
esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve
lançar. E que não houvesse mais do que ter Vossa Alteza aqui esta pousada para
essa navegação de Calicute bastava. Quanto mais, disposição para se nela cumprir
e fazer o que Vossa Alteza tanto deseja, a saber, acrescentamento da nossa fé!
E desta maneira dou aqui a Vossa Alteza conta do que nesta Vossa terra vi.
E se a um pouco alonguei, Ela me perdoe. Porque o desejo que tinha de Vos tudo
dizer, mo fez pôr assim pelo miúdo.
E pois que, Senhor, é certo que tanto neste cargo que levo como em outra
qualquer coisa que de Vosso serviço for, Vossa Alteza há de ser de mim muito bem
servida, a Ela peço que, por me fazer singular mercê, mande vir da ilha de São
Tomé a Jorge de Osório, meu genro -- o que d'Ela receberei em muita mercê.
Beijo as mãos de Vossa Alteza.
Deste Porto Seguro, da Vossa Ilha de Vera Cruz, hoje, sexta-feira,
primeiro dia de maio de 1500.
Pero Vaz de Caminha.