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HISTÓRIA
DE CABUL
Após a queda dos 'taliban',
uma jornalista norueguesa viveu três meses com a família de um livreiro do
Afeganistão. Escreveu uma reportagem romanceada, retrato de um país afinal
desconhecido.
Nos meses que se seguiram aos atentados do 11 de Setembro de 2001, o mundo
ocidental aprendeu a dominar um novo léxico. Os média reintroduziram o
Afeganistão no mapa, popularizaram Cabul e Jalalabad, Osama bin Laden e o
'Mullah' Omar.
Conceitos mais elaborados, como o regime 'taliban', a Al-Qaeda ou a
Aliança do Norte, entraram na linguagem corrente, bem como as inevitáveis
'burqas'. Asne Seierstad, repórter de guerra norueguesa, vestiu uma. Não
durante o tempo breve de uma reportagem televisiva mas ao longo de três
meses. Testemunhou o quotidiano de uma família afegã e relatou a
experiência em O Livreiro de Cabul.
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A leitura chega a ser frustrante, porque revela a dimensão da nossa
ignorância. Apesar de o Afeganistão nos ter entrado em casa durante
semanas a fio, a informação que ficou reduz-se hoje a estereótipos tão
gastos como uma 'burqa'.
A jornalista norueguesa percebeu-o no dia em que foi convidada a jantar na
casa de Sultan Khan, um dos mais importantes livreiros de Cabul. Estava
fascinada com a figura dele, um patriarca aparentemente liberal que, por
amor aos livros, tinha enfrentado a prisão e o exílio. «À saída disse para
comigo: 'É isto o Afeganistão. Que interessante seria escrever um livro
acerca desta família'.»
Propôs ao livreiro, ele aceitou. O momento era propício, o regime 'taliban'
tinha caído há pouco - e na Primavera de 2002 o país dava os primeiros
sinais de regresso a uma relativa normalidade. A família era a ideal: num
país maioritariamente analfabeto, tinha três elementos a falar inglês.
Asne Seierstad baseou-se sobretudo nos testemunhos destes - e nos seus
serviços como intérpretes - para reconstituir a história do clã. Viveu
como eles, dormiu no chão entre vários outros corpos, comeu o que todos
comiam, obedeceu às regras da casa. Mas com uma liberdade impensável para
uma mulher afegã.
Sendo ocidental, podia circular entre os mundos feminino e masculino e
recolher informações dos dois, sem esconder de que lado estava. «Era
sempre a mesma coisa que me provocava: a maneira como os homens tratavam
as mulheres. A crença na superioridade masculina encontrava-se tão
entranhada que raramente era questionada.»
Também por isso usou a 'burqa', queria sentir na pele o que era viver como
uma afegã: «Como eu comecei a odiar aquilo com o tempo! Como nos oprime a
cabeça e provoca enxaquecas, como é difícil ver o que quer que seja
através da rede! [...] Como nos sentimos libertas quando chegamos a casa e
a podemos despir!»
A revolta sentida por Asne Seierstad acaba fatalmente por condicionar o
livro, porque limita a observação da realidade ao ponto de vista feminino.
Não há, porém, como escapar à parcialidade: um dos objectivos desta
reportagem é justamente mostrar até que ponto o Afeganistão é uma
sociedade patriarcal. A família do livreiro é exemplar, o jugo de Sultan é
arrepiante, espelhando o domínio que os homens exercem sobre as mulheres.
Temos, assim, o patriarca, os irmãos, as duas esposas - uma das quais
adolescente -, os filhos de ambas e uma avó. A hierarquia é simples: sendo
Sultan o filho mais velho, manda em todos os irmãos; e estes, por serem
homens, mandam em todas as restantes mulheres (mesmo, por exemplo, nas
tias mais velhas). O sistema é de uma rigidez absoluta, ditada por
tradições muito anteriores aos 'taliban', que condicionam a vida de todos,
desde logo nas complexas regras que determinam os casamentos.
A jornalista norueguesa começa a obra justamente com uma boda, quando
Sultan toma uma segunda mulher. A partir daí, diferentes episódios vividos
pelos familiares servem de pretexto a uma reflexão mais profunda sobre
determinados aspectos da sociedade.
Através de um furto na livraria, observa-se o inane aparelho de justiça; a
peregrinação de um irmão do livreiro expõe o fracasso do sistema
religioso; um caso de infidelidade revela a barbárie das leis conjugais -
a mulher infiel, por desonrar a família, é assassinada pelos irmãos, sob
as ordens da própria mãe.
O pano de fundo comum a todas os episódios é a herança de medo legada
pelos 'taliban'. Apesar de a história decorrer no período de transição, é
evidente que o terror vivido desde 1996 deixará marcas ao longo de anos.
Igualmente óbvio é o facto de semelhante regime só poder existir num país
como o Afeganistão - dominado por leis e costumes verdadeiramente
pré-históricos.
Reside aí o grande mérito do livro, a par da sua legibilidade. Ao
introduzir-se numa família afegã, Asne Seierstad conseguiu dar-nos a ver o
modo como o sistema patriarcal se entranhou no quotidiano dos afegãos. O
discurso bem pode ser feminista: de facto, são as mulheres quem mais
sofre. Mas a prisão estende-se a todos os que vivem no país.
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