O manual dos moluscos do Brasil
Depois de 12 anos de pesquisas,
professor do Museu de Zoologia da USP lança catálogo com informações sobre
1.100 espécies desses animais – uma riquíssima fauna que, fundamental para
a reciclagem de nutrientes, também sofre ameaça de extinção
MÁRCIA SOMAN MORAES
Um risco para
o ambiente
O animal não tem culpa, mas sim o
homem em introduzir espécie em habitat desconhecidos.
Baseada em informações
publicadas em diversos estudos de todo o mundo, a obra é ilustrada
com centenas de fotografias. “Assim a pessoa pode pegar sua concha e
comparar com as fotos, para ver se aquele indivíduo é um exemplar
conhecido ou não”, explica.
Financiado pela Fapesp, USP e algumas instituições privadas, o livro
foi resultado de uma pesquisa realizada por Simone com a colaboração
de diversos professores, pesquisadores e instituições
internacionais.
Estritamente para consulta, o
livro separa os moluscos por família e gênero e traz breves
informações sobre cada uma das espécies, como nome, hábitat, lista
de trabalhos publicados sobre ela e tamanho. No final, apresenta uma
referência bibliográfica com quase 3 mil livros sobre moluscos.
Todas as espécies de moluscos nativas brasileiras estão em
séria ameaça de extinção. Inclusive espécies que nem chegamos a
conhecer. Com esse alerta, Luiz Ricardo Simone lançou em outubro o
livro Land and freshwater molluscs of Brazil (“Moluscos de terra e
água doce do Brasil”). Professor do Museu de Zoologia da USP, Ricardo
Simone passou 12 anos pesquisando os moluscos nativos brasileiros para
elaborar esse catálogo, que traz informações de cerca de 1.100
espécies.
Apesar de ser o
segundo maior grupo animal brasileiro, abaixo apenas dos insetos,
grande parte das espécies de moluscos nativas é ainda desconhecida.
Lembrando a necessidade de mais estudos sobre esse grupo, Ricardo
Simone estima que apenas um terço das espécies de moluscos terrestres
e metade dos moluscos de água doce brasileiros foram identificados. “É
um ciclo vicioso. Como é uma área muito abrangente e com pouco
material de referência bibliográfica, os pesquisadores acabam
preferindo outros animais e os moluscos continuam mal estudados”,
afirma.
Foi para preencher parte dessa lacuna
que o professor lançou o catálogo com os moluscos encontrados nos
diversos ecossistemas brasileiros: mata atlântica, cerrado, caatinga,
floresta amazônica, bacias hidrográficas do Paraná e do Amazonas e o
rio São Francisco. “É um inventário para ser consultado como um
primeiro passo para qualquer interessado em conhecer os moluscos
brasileiros”, explica o professor.
Baseado numa extensa pesquisa
bibliográfica, o catálogo apresenta 1.074 espécies nativas e um
apêndice com 33 espécies invasoras. A idéia é que o catálogo seja
posteriormente revisado e ampliado, sempre atualizado com as novas
espécies descobertas.
Fêmeas – Nos 12 anos
de pesquisa, Simone desenvolveu diversos projetos paralelos, que
resultaram em cerca de 50 novas espécies inclusas no livro. Uma
delas é chamada Aylacostoma ci Simone, descoberta em 2001 em
Rondônia. Essa espécie só tem fêmeas, que se reproduzem por
partenogênese, um tipo de reprodução assexuada. “Por isso coloquei o
nome ci, que em tupi significa mãe”, explica Luiz.
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Com a rápida degradação do ambiente,
diversas espécies descritas no catálogo do professor Luiz Ricardo Simone
estarão extintas no futuro. Outras desaparecerão até mesmo antes de serem
conhecidas. “Estamos correndo para salvar a fauna que nem conhecemos”,
afirma Simone. “No caso dos moluscos terrestres, o perigo de extinção se
torna ainda mais drástico. Muitas dessas espécies são endêmicas, só
ocorrem num local específico, que, se for destruído, causará a extinção do
animal.”
Esse foi o caso do Anodontites moricandi. Essa espécie foi primeiramente
identificada em 1860. Com cerca de 10 centímetros de comprimento, habitava
o baixo Rio São Francisco e com as modificações em seu curso, entrou para
a lista de animais brasileiros em extinção.
A extinção dessas espécies traz
conseqüências graves para a natureza, destaca Simone. Os moluscos são os
maiores responsáveis pela reciclagem de nutrientes no ambiente, o que os
torna essenciais para a manutenção dos ciclos de preservação. Por essa sua
função, o caracol foi escolhido como símbolo da reciclagem de materiais –
como acontece com o USP Recicla, programa de educação ambiental da
Universidade. “Se um molusco desaparece, o ecossistema do qual ele faz
parte acaba. Tudo na natureza é muito conectado, como uma rede. O molusco
é predador de uma espécie e presa de outra. Se ele some, esse delicado
equilíbrio é rompido e todos os seres vivos dessa teia somem”, alerta
Simone.
Invasores – Além da degradação ambiental, as espécies
brasileiras enfrentam uma desleal competição com espécies invasoras,
que também são responsáveis por graves problemas sanitários e
agronômicos. Trazidas para criação ou mesmo acidentalmente, essas
espécies são estranhas ao ecossistema local e por isso não possuem
predadores naturais, o que proporciona um crescimento descontrolado da
população, que, conseqüentemente, extingue as espécies nativas.
O caso mais comum no Brasil é o
Achatina fulica, mais conhecido como gigante africano. Trazido da
África como alternativa ao escargot europeu, que não se adaptou ao
clima quente brasileiro, a espécie não obteve sucesso comercial e hoje
pode ser encontrado em todo o País. Muito resistente, o gigante
africano come praticamente de tudo, o que o transforma em uma grande
praga agrícola, especialmente no sul da Bahia. “Recebemos ligações de
agricultores de todo o Brasil reclamando de ataques de gigantes”,
conta Simone.
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Hoje, o governo brasileiro proíbe a
criação do gigante africano – uma ação tardia, já que a espécie se
espalhou pelo País. “Depois que uma espécie invasora se instala, não
tem o que fazer. É impossível matar todos os espécimes. A questão é
prevenir”, diz o professor.
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Esse quadro é agravado
pela ausência de uma consciência de preservação desses animais, que
dificilmente figuram nas listas de animais ameaçados divulgadas por
entidades ecológicas, continua Simone. “Ninguém vai preservar uma área
porque ali tem um caramujo. Os moluscos têm um apelo bem menor com a
população do que o mico-leão-dourado, por exemplo, apesar de ser
fundamental para o equilíbrio ecológico.”
Mesmo dentre as centenas de espécies já
conhecidas, há ainda muito para se conhecer. Diversas famílias de
moluscos foram identificadas em meados do século 19 e nunca mais foram
revistas, tornando muito difícil identificar suas espécies. Exemplo
disso é o Aylacostoma decapitata. Visto no sul da Bahia em 1827, esse
molusco nunca mais foi encontrado e a única imagem que se tem dele é
um desenho. “Não se sabe ao certo se essa espécie existe. Esse
registro pode ser o desenho errado de outra espécie parecida”,
ressalta Simone.
Outra dificuldade nessa identificação
é que a fauna brasileira, diferente das demais, se caracteriza por uma
diversidade muito grande de espécies, mas com poucos indivíduos. “Nós
falamos sempre para os biólogos: se encontrou, traz, porque pode não
achar mais.”
Além disso, muitas dessas espécies
têm seus registros somente em museus e instituições do exterior. Como
praticamente toda pesquisa em biologia realizada no Brasil até meados
do século 20 era feita por europeus e norte-americanos, os tipos
dessas espécies foram levados para museus de fora.
É também no exterior, acredita
Simone, que está cerca de 85% do público interessado em seu livro,
que, por essa razão, foi escrito em inglês. “A maioria dos compradores
é estrangeira, colecionadores de conchas, pesquisadores de outros
países, museus. O mercado lá fora é muito grande, maior do que o
brasileiro”, explica. Mais um sinal da epidêmica falta de interesse
brasileiro por sua rica fauna.
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